Bebê a bordo

Não chorei quando, após pouco mais de um ano juntos, crepitando na cama e nos estranhando em quase tudo fora dela, decidimos nos separar. Não nessa hora. Éramos, então, jovens e tolos demais para achar que um passo tão banal nos nocautearia. Por isso, presumo, aquele adeus nos pareceu tão simples. Num sábado, após o café da manhã, estava tudo acertado. Negligentemente. Como quem apaga o derradeiro cigarro de um dia. Na segunda-feira, bem cedo, o carro desceu de ré a ladeira da vilinha paulistana em que vivíamos. Ao volante, ela, seus cachos ruivos e rosto de menina, em cujos olhos pude ver de relance uma lágrima. No banco de trás, alheio a tudo em sua cadeirinha, um bebê. Nosso filho. Ao vê-los partir, pressenti turbulências. Mas eu estava exausto. Tomei um calmante e voltei a dormir.Voltei a dormir, a comer bobagens, a beber até tarde, a juntar louça suja na pia e a vagar sem muito norte pelas noites e dias. A louca cavalgada dos solteiros. Mas ficara um buraco. Cadê meu menino? Uma estranha amargura roubava-me, a cada manhã, um pouquinho de ar. Um dia me asfixiou.

Pouco antes da Páscoa, a mãe me ligou, dizendo que passariam o feriado na praia. A notícia me pegou de jeito. Meu primogênito veria o mar pela primeira vez – e eu não estaria ali, ajudando-o a olhar. Meu menino, as ondas, baldinhos de plástico, esteiras e guarda-sóis na areia… A foto perfeita – e eu fora dela. Era o primeiro vagalhão do meu tsunami interior.

BENDITO FRUTO
Por um bom tempo, comi o pão que o diabo amassou. É assustador como uma separação pode se parecer com a morte. Com filhos essa sensação de perda se amplifica. Em seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o escritor José Saramago fala de uma tal “dor sem remédio”. Deve ser essa. Alguém morrera. Provavelmente o menino dentro de mim que no fundo sonhava ter uma família duradoura e feliz.

Duvido que meu casamento tivesse mesmo resistido. Mas me arrependo até hoje de ter tratado seu desfecho com desdém. Não dei ouvidos ao menino que pedia que eu lutasse mais. Como sofria com seu chorinho, sufoquei-o, para abreviar minha aflição. Um comportamento tolo e pueril – que, à época, eu simplesmente não conseguia enxergar. Só depois, com as lições maravilhosamente simples que o tempo nos dá. Como esta: filhos são sagrados!

Graças a esse mesmo tempo, aquietei. E a vida acabou me brindando com um segundo casamento cuja doçura pretendo desfrutar pelo resto de meus dias. Meu garotão também sofreu – mas conseguiu sobreviver relativamente incólume aos fatos. Em suma: a vida foi em frente.

Mas trago até hoje uma pequena cicatriz. Aquele carro descendo a ladeira ainda dói. Ainda me pergunto o que ela, por detrás daquela lágrima, e ele, o pequenino, alheio a tudo em sua pureza, esperavam que fizesse aquele rapaz. Eu – que, minutos depois, tomaria um calmante. E voltaria a dormir.

Publicada na edição de maio de 2005 da revista VIP

6 Responses to Bebê a bordo

  1. Meire disse:

    To lindo la da Luma, Txto pra refletir muito..
    Meire

  2. Micha disse:

    texto lindo..vou colar aqui o mesmo comentário q fiz no blgo da Luma, onde li esse texto pela 1a. vez.

    “sabe q lembrei da separação dos meus pais..meu pai indo embora, a dor sem remédio..tdo tão atual..nem parece q já se passaram 5 anos…
    o pior de tdo é q nos acostumamos a viver sem uma pessoa q não conseguíamos nos imaginar longe um dia sequer, até então…
    vida q segue.”

    beijosssssssss

  3. gandra disse:

    Queridas Meire e Micha,

    Muito obrigado por essas palavras gentis.
    A vida é mesmo uma dura caminhada, curta e incerta.
    Ainda assim, é bom viver cada dia com as suas alegrias e preocupações.
    Beijo carinhoso!

    Zé Ruy

  4. Josinha disse:

    Li este texto, anteriormente, no blog da Luma e repito o que comentei:

    Deve ser uma situação realmente muito triste. Como diz o texto, no momento parece ser a única solução, a mais fácil e sensata, mas dificilmente é assim. Muitas vezes tb, pode ser o mal necessário.

    De qqr forma, o texto é envolvente. Parabéns.

    Abraços

  5. Luci100 disse:

    Gandra!
    tb. vim do Luz de Luma.
    Adorei seu texto e vou voltar pra ler tudo!!!
    bjs!

  6. gandra disse:

    Obrigado, Luci.
    Também estive em seu blogue.
    Volte sempre. Você é muito bem-vinda.
    Abraço carinhoso!

    Zé Ruy

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